Publicado por Ramon Vago em 28/11/2023
Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelas Procuradorias dos Municípios talvez seja lidar com a cobrança do IPTU em nome de pessoas falecidas. Isso ocorre porque os herdeiros geralmente não prestam nenhuma informação à Secretaria Municipal da Fazenda para que o cadastro do imóvel seja atualizado. Além disso, como em grande parte dos casos os herdeiros jamais chegam a abrir o inventário, o IPTU continua sendo lançado por anos contra o falecido, de forma equivocada pela Prefeitura.
Consequentemente, a execução fiscal acaba sendo movida contra uma pessoa que não existe mais, não logrando êxito, pois, como se sabe, a substituição da CDA prevista no art. 203 do CTN e no art. 2°, §8º, da Lei de Execuções Fiscais, não é admitida para correção do sujeito passivo, a teor da súmula 392 do STJ: “A Fazenda Pública pode substituir a certidão de dívida ativa (CDA) até a prolação da sentença de embargos, quando se tratar de correção de erro material ou formal, vedada a modificação do sujeito passivo da execução.”
Nesse sentido, para a alegria dos herdeiros e para a tristeza das prefeituras, como o redirecionamento da execução contra o espólio só tem sido admitido pelos tribunais nos casos em que o falecimento do contribuinte ocorra depois de sua citação nos autos da execução fiscal, muitas execuções são extintas sem êxito, uma vez que as prefeituras normalmente não se dão o trabalho de fazer uma prévia verificação do cadastro do imóvel, visando atualizá-lo.
A dificuldade surge a partir do óbito do contribuinte do IPTU, onde entram em cena os responsáveis tributários por sucessão. O art. 131 do CTN, onde está disciplinada a responsabilidade dos sucessores, trata de responsabilidade pessoal dos agentes listados em seus incisos, mas poucos realmente entendem a lógica do dispositivo citado. Para melhor comprensão, veja:
Art. 131. São pessoalmente responsáveis:
I – o adquirente ou remitente, pelos tributos relativos aos bens adquiridos ou remidos; (Redação dada pelo Decreto Lei nº 28, de 1966)
II – o sucessor a qualquer título e o cônjuge meeiro, pelos tributos devidos pelo de cujus até a data da partilha ou adjudicação, limitada esta responsabilidade ao montante do quinhão do legado ou da meação;
III – o espólio, pelos tributos devidos pelo de cujus até a data da abertura da sucessão.
Para Leandro Paulsen, a responsabilidade pessoal resulta no desaparecimento do contribuinte originário, ocorrendo a subrogação ou responsabilização integral do terceiro. ¹ Eduardo Sabbag entende do mesmo modo. ² De modo mais objetivo, Ricardo Alexandre explica que a responsabilidade pessoal ou por transferência opera-se do seguinte modo: ³
“(…) Já na responsabilidade “por transferência”, no momento do surgimento da obrigação, determinada pessoa figura como sujeito passivo, contudo, num momento posterior, um evento definido em lei causa a modificação da pessoa que ocupa o polo passivo da obrigação, surgindo, assim, a figura do responsável, conforme definida em lei.“
Em síntese, podemos dizer que o lançamento ocorrerá normalmente em nome daquele que conste como contribuinte à época do fato gerador, mas esse é posteriormente substituído pelo responsável tributário. Nesse caso, os responsáveis indicados no art. 131 do CTN deverão ser os únicos devedores indicados na certidão de dívida ativa (CDA), no momento da cobrança.
A principal dificuldade é a conciliação da linha temporal estabelecida pelos incisos II e III, do art. 131, do CTN, com as regras de transmissão da herança reguladas pelo Código Civil. Isso ainda é agravado pela inversão de ordem dos incisos, em relação ao curso natural dos eventos.
Veja que, conforme art. 1.784 do CC, “aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.” Isso significa que, ocorrendo a morte do proprietário dos bens, a herança considera-se automaticamente transmitida aos herdeiros. Porém, enquanto não realizada a partilha, os herdeiros exercem a propriedade ou posse do bem em condomínio, ou seja, como coproprietários ou compossuidores (art. 1.791 do CC), conforme o caso. Como estamos falando de bens imóveis, cuja propriedade só se transmite com o registro do título translativo no Cartório de Registro de Imóveis, os herdeiros estariam, nesse caso, exercendo a posse dos imóveis desde o falecimento daquele que deixou a herança, passando a figurar como legítimos proprietários somente após o registro da partilha junto à matrícula do imóvel no cartório.
Pela análise dos dispositivos do Código Civil apontados, poderíamos precipitadamente concluir que os fatos geradores do IPTU posteriores ao óbito seriam sempre praticados pelos próprios herdeiros, ou seja, na condição de contribuintes, e não como responsáveis. Isso porque o CTN também admite como contribuinte do IPTU o possuidor a qualquer título.
Contudo, o entendimento pego emprestado do art. 1.997 do Código Civil é que a herança – ou espólio – responde por todas as dívidas do falecido. Somado isso à previsão contida no art. 192 do CTN, segundo o qual “Nenhuma sentença de julgamento de partilha ou adjudicação será proferida sem prova da quitação de todos os tributos relativos aos bens do espólio, ou às suas rendas”, os herdeiros jamais seriam responsabilizados por dívidas tributárias deixadas pelo de cujus.
Não é bem assim, pois a hipótese do inciso II do art. 131 do CTN será eficaz no caso de lançamentos realizados após a partilha, referente a fatos geradores ocorridos antes dela. Sendo mais claro, o inciso II visa resguardar aquelas situações em que a Fazenda Pública efetua o lançamento em atraso.
Essa nos parece a interpretação que deve ser conferida aos incisos II e III do art. 131 do CTN, de modo que: uma vez havendo ação de inventário em andamento, o único responsável pelos débitos tributários relacionados ao imóvel será o espólio, representado pelo inventariante, nos termos do art. 1.991 do Código Civil. Excepcionalmente, poderá o próprio inventariante responder pelos tributos devidos pelo espólio de forma solidária ⁴, conforme art. 134, IV, do CTN.
Será o espólio responsável tributário, propriamente falando, pelos fatos geradores ocorridos até a data do óbito – quando o contribuinte era o de cujus – e será contribuinte dos fatos geradores ocorridos após o óbito, até que se realize a partilha, quando então os herdeiros passarão a figurar como contribuintes. Todavia, os herdeiros serão também responsáveis tributários por eventuais débitos que só venham ser apurados posteriormente à partilha, mas que se refiram a fatos geradores anteriores a ela.
Para tentar responder de forma mais clara quem é o responsável pelo pagamento do IPTU nos casos em que o contribuinte tenha falecido, utilizaremos a seguir um quadro mnemônico extraído do livro Manual de Direito Tributário de Eduardo Sabbag:
Quadro mnemônico – responsabilidade dos sucessores
Tributos | Contribuinte | Responsável | Tipo | CTN |
Devidos ATÉ a morte | de cujus | Espólio | Pessoal | Art. 131, III |
Devidos APÓS A morte (descobertos ANTES da sentença de partilha) | Espólio | Inventariante | Solidária | Art. 134, IV |
Devidos ATÉ A morte e não pagos ATÉ A partilha (descobertos APÓS a sentença de partilha) | de cujus | Sucessores e cônjuge meeiro | Pessoal | Art. 131, II |
Devidos APÓS A morte e não pagos ATÉ A partilha (descobertos APÓS a sentença de partilha) | Espólio | Sucessores e cônjuge meeiro | Pessoal | Art. 131, II |
Como já foi dito, também é bastante comum que os herdeiros não abram o inventário. Nesses casos, embora não haja um consenso sobre a forma correta de se proceder com a atualização do cadastro e com a execução fiscal, o fato é que de nenhuma forma os herdeiros poderão valer-se da não abertura do inventário para se esquivar de suas obrigações tributárias, conforme entendimento que extraímos do art. 118, I, do CTN.
Quando constatada a não abertura do inventário no prazo legal de 2 meses previsto no art. 611 do CPC, entendemos que os herdeiros poderão ser inseridos no cadastro imobiliário diretamente como contribuintes, na qualidade de possuidores, por força da transmissão imediata da herança prevista no art. 1.784 do Código Civil, combinado com os arts. 34 e 130 do CTN.
É certo que a transmissão da propriedade só se concretizará com o registro do formal de partilha no cartório de registro de imóveis, mas não podemos dizer o mesmo em relação à posse. A verdade é que a posse é uma situação de fato, cuja existência independe de formalidades legais. Qualquer formalidade exigida é meramente declaratória, e não constitutiva do direito.
Nesse sentido, verifiquemos o teor do art. 1.204 do Código Civil: “Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.”
Vejamos algumas decisões nesse sentido:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO EXECUÇÃO FISCAL POLO PASSIVO ESPÓLIO AUSÊNCIA DE ABERTURA DE INVENTÁRIO CITAÇÃO DOS HERDEIROS DECISÃO REFORMADA RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1 O artigo 131, incisos II e III, do Código Tributário Nacional, estabelecem de modo categórico que o espólio e os sucessores são responsáveis pelos tributos devidos pelo de cujus. 2 – É certo que o inventariante representa o espólio em juízo, enquanto não efetuada a partilha. Todavia, se não aberto o inventário, todos os herdeiros deverão ser citados. 3 Recurso conhecido e provido.
(TJ-ES – AI: 00187716220178080024, Relator: ELISABETH LORDES, Data de Julgamento: 12/12/2017, TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 19/12/2017)
EMENTA AGRAVO DE INSTRUMENTO PROCESSO CIVIL AÇÃO DE EXECUÇÃO FISCAL AJUIZAMENTO EM FACE DO ESPÓLIO DETERMINAÇÃO DE DILIGÊNCIAS ACERCA DA REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL DO EXECUTADO MOMENTO INOPORTUNO DECISÃO REFORMADA RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1 A parte autora na ação de execução fiscal deve ajuizar referida demanda em face de quem consta no título executivo extrajudicial, de quem consta como contribuinte na CDA. 2 Em regra, questões relativas à representação processual do espólio, inclusive se houve ou não abertura de inventário, somente devem ser tratadas depois da citação. 3 Se, à época do ajuizamento da ação, o executado já havia falecido, a ação de execução deve ser proposta contra o espólio ou, nas hipóteses de ausência de abertura de inventário ou de encerramento deste, diretamente contra os sucessores do executado. (TRF 4ª R.; AC 5003845-75.2016.404.7006; PR). 4 Decisão reformada, com determinação de citação do executado. 5 Recurso conhecido e provido.
(TJ-ES – AI: 00179485420188080024, Relator: ARTHUR JOSÉ NEIVA DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 17/09/2018, QUARTA CÂMARA CÍVEL)
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1 PAULSEN, L. Curso de direito tributário completo. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2015, p. 95.
2 SABBAG, E. Manual de direito tributário. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 812.
3 ALEXANDRE, R. Direito tributário esquematizado. 9ª ed. São Paulo: Método, 2015, p. 311.
4 Entendemos que há um erro de conceituação no caput do art. 134, ao definir como solidária uma hipótese de responsabilidade que na realidade é subsidiária.
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